quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Quatro soros e um jeito novo de medir o tempo

Quatro litros de soro foi o que a minha pititinha tomou na veia, numa noite qualquer de julho deste ano e, seguramente, uma das piores noites de minha vida. Algo surreal.
Não vou relatar muito aqui do mal que minha filha passou. Lógico que quem tava e ficou pior foi ela, ela era a doentinha, mas, egoisticamente, quero e vou falar de minhas sensações, que se tornaram mais intensas, óbvio, por que Laura tava dodói...
Só ontem fui falar sobre essa noite com Nelma, minha irmã que, pra variar, nos levou praquele lugar.
Mas então... nessa fatídica noite ficamos, Laurinha e eu, num mini-hospital, pois quando fomos ao hospital normal... adivinha? Carteirinha do convênio vencida!!! Ninguém merece!
Que dó eu senti da população que não tem condições de ir a um hospital regular; que precisa enfrentar quatro filas até ser atendida. Aquilo não é lugar de gente.
Depois que o médico atendeu Laura (que entrou no consultório [?] com minha irmã, já que não presto pra isso), diagnosticou: virose (hauahauhs tudo é virose quando não se sabe o quê) e mandou que um dos enfermeiros lhe aplicasse quatro litros de soro, minha irmã foi pra casa e fiquei euzinha lá, até o trem acabar. Afinal, eu não era a mãe da pessoa?
Pra começar eu já estava com dor de cabeça e tinha meu estômago nas costas. Naquele dia eu havia comido um tiquim só, lá pela uma da tarde, e mais nada.
Na primeira das grandes salas, havia uma televisão num suporte de parede, quase no teto. Olhar aquilo era impraticável. Meia hora e torcicolo na certa. Além do quê a danada era pra ninguém ouvir. E assim eu vi alguns pedaços da novela das nove, jornal da globo, o Jô, um filme. Via quando passava por lá, porque minha vida era andar naqueles corredores e salas.
Da fome e dor de cabeça eu até lidei bem, mas aí surgiu a vontade de fazer um xixizinho básico. Afinal, eu sou a que bebo num sei quantos litros de água por dia e blablablásss. O tal banheiro não tinha água (o que, no meu entender, é caso de polícia); vaso daquele jeito (visualizem, minhas gentes) e lá vou eu me equilibrar, porque sentar nem morta, pra que a barra de minha calça não molhasse (a porra do chão era água [?] pura). Claro que minha calça molhou (quero vomitar, nojo sinto até hoje).O primeiro soro acabou logo, era mais rápido, disse o moço aplicador. E a pequena reclamando, resmungando feito véia, querendo que a cabeça ficasse mais alta que o corpo. Travesseiro?
Segundo soro e o frio chega com tudo (era julho, afinal). O moço lá arrumou dois cobertores, um pro corpo e outro pra Laura colocar sob a cabeça. Pelo menos ela estava mais confortável [?]. Euzinha aqui sem blusa de frio, com fome, dor de cabeça, nojo e sem saída. Como assim eu não carreguei nenhuma revista ou livro? Poderia ler, né? Ajudaria a passar o tempo. E nas minhas andanças encontrei um folder. Vou ler esse trem, pensei, quem sabe aprendo alguma coisa?
Na primeira frase tinha um afim em vez de a fim (esse afim é uma maldição, mais vômito), largo o folheto.
Sento na cadeira em frente à maca da filhota, levanto, ando um pouco, volto e penso toda uma vida naqueles soros (porque depois do segundo eu contava o tempo por soro aplicado).
Terceiro soro, encontro a melhor das poltronas: aquelas escadinhas de subir na maca. É nela que eu sento e coloco minha cabeça perto dos pés da pititinha de onde dava pra vê-la direitinho.
Nisso o cara que tava na maca ao lado começa a se mexer e eu pensei: vai cair. Essas macas não cabem pessoas largas, já repararam? E se o sujeito cai vai ser um estrago só, a pequena vai se assustar com o barulho e pode também se machucar. Deu nada não, logo ele se aquietou.
Quarto soro e eu: uffaaa, último tempo esse. E foi o mais longo de todos, mesmo o moço me dizendo que ia deixá-lo correr mais rápido. Enquanto ele corria eu cheguei nos meus quase cinquenta e cinco anos.
Sim, do primeiro ao terceiro eu repassei quatro décadas e pouquinho. Os últimos e mais longos treze anos de minha vida ficaram pro quarto tempo. E quer saber? Uma merreca!!!
Nessa análise, via quatro litros de soro em filha, cheguei à conclusão que ninguém tem vida traçada. Por que se me perguntassem eu jamais diria que minha vida tomaria o rumo que tomou, logo a minha, que era tão organizada. Jamais me imaginaria naquele mini-hospital, com fome, frio, desconforto, solidão. Porque noutros tempos, mesmo com carteira vencida, por desleixo, eu iria pra um hospital normal; jamais naquele lugar horrível.
Inda bem que havia dinheirinho na minha bolsa o suficiente pra pagar um taxi, na volta pra casa, e me dar ao luxo de deixar o troco pro motorista. Gratidão é tudo, afinal, fora ele que nos trouxera, perto das três horas da manhã, de volta à nossa casa, onde havia as melhores coisas que eu poderia pedir pra mim e pra Laura. Aquilo que eu pedia com a maior fé lá naquele lugar que não é gente: minha cama, meu banheiro, meu alimento, minha blusa de frio, meu poder, meu tempo.
Meu tempo, assim contadinho de jeito normal, pelo relógio tic tac e não pelos quatros soros de uma noite maldita.

5 comentários:

Helô disse...

Rosanita, sei exatamente o que você passou. Ninguém neste mundo merece um hospital público do nosso Brasil varonil. Nem sua filhota, nem a minha, nem o filho do caseiro ou o indigente. É uma vergonha.

Rafael Freitas disse...

E logo com a Laurinha, tão pequenininha, né?!

Ô, semana!

Palmitos e Cogumelos disse...

E eu que sou uma defensora das IDEIAS do SUS fico tristinha. Primeiro pela sua filha e por vc e depois por saber que idéias não são muita coisa sem concretude...

Divagações, pão e circo disse...

Já passei por esta situação algumas vezes. é uma situação em que vc deseja simplesmente não existir.

Laura Reis disse...

olha.. não vou dizer como foram assensações pra mim que é pra não humilhar ninguém.


;)

pasosu, mamãe, passou.