segunda-feira, 2 de março de 2009

Aline: polidez e ira

Conheci Aline há mais de vinte e seis anos. Numa cidade quente e num ambiente de trabalho extremamente competitivo.



Em meio àquelas pessoas todas suadas que andavam pela agência bancária (não havia vento ou brisa na cidade, muito menos ventilação no local e o ar condicionado era um tanto ruim) ela mantinha um jeito sempre de gente que acabou de sair do banho. Vestia branco, quase todos os dias, tudo muito limpinho e passadinho.
Os cabelos curtos, ralos, de uma cor sem cor, estavam sempre limpos também, fazendo com que parecessem bonitos.
Os gestos comedidos de Aline, a fala mansa e baixa aparentava demonstrar alguém com um equilíbrio emocional invejável. Alguém de uma elegância e sensatez inabaláveis.


Aline tinha sempre um chiclete na boca, mas ninguém a via mastigando... só se a gente reparasse muiiitoo pra perceber uma trocada sutil do chicle, de um lado pro outro da boca. E eu reparava, quando podia, porque achava instigante essa capacidade dela de ser tão... tão... digamos: polida.


Os papéis na mesa de Aline estavam sempre muito bem arrumadinhos, a letra era legível, sem ser bonita, mas caprichosa... e com um detalhe muito importante: ela era muito inteligente e sabia, muiiiitoo bem, tudo de português.
Com Aline eu aprendi a usar, de forma correta, o verbo fazer e haver quando eles indicam um tempo já decorrido. Ela me dizia: “Rosana, substitua o faz e o há pelo tem e do jeito que você falaria ou escreveria com o “tem”, você faz com os outros dois.” E dava exemplo: “tem dois anos que ganhei isso = há dois anos ganhei = faz dois anos que ganhei... não tem porque você falar "fazem" ou "houveram", nesta construção” E muitas outras coisas ela me ensinou em relação ao uso do português. E sempre ensinava de um jeito calmo, ou aparentemente calmo.
Mas o olhar dela me intrigava. Algo me dizia que Aline não era assim, tão comedida.


Eu, com vontade de desvendar aquela esfinge, ia aos pouco perguntando uma coisa aqui, outra ali... e um dia ela me contou que havia dito para o senhor marido dela que se ele soltasse algum daqueles maravilhosos barulhinhos perto dela, eles se separariam, de imediato.
E eu, rindo muito disse: “cê tá brincando.” E ela – consegui perceber – bem irada, disse: “separo, na hora.” E deu o assunto por encerrado.
Fiquei com aquilo matutando na minha cabeça e maldosa pensei: “é, feder mais, não pode”, já que o marido de Aline – também colega de trabalho – tinha dois famosos fedores: no sovaco e na boca. Era um caos...
Ele vestia também roupas limpinhas, passadinhas, maior capricho, mas fedia, o homem. Então, tadinha, dei razão a ela. Melhor não aceitar o que pode e deve ser evitado. Concordei. Ponto pra ela.
Só que eu, cá com os meus maldosos botões, ficava imaginando uma cena sexual entre o casal: naquela cidade quente, depois de um fuc fuc não haveria nariz que resistisse... judiação.


Como trabalhávamos na mesma equipe, não tinha como não conversamos no dia-a-dia nem como não reparar no jeito de Aline se portar. Em muitas coisas eu tinha vontade de ser parecida com ela, sobretudo, nesse lance de eu conversar com as 355 mãos que tenho...
Acho bonito demais, mulher com gestos curtos... suaves. Dá a impressão de paz no coração, equilíbrio, sabedoria e, sobretudo, feminilidade...
Dá a impressão!!!

Um dia, trabalhávamos: Aline, Estela e eu, num outro setor bem tumultuado com serviço para entregar pra ontem, sabem como?
Pois bem, em meio àquela correria, malote saindo, Estela riscou com a caneta, sem querer, a blusa branquinha de Aline. Medo!!!
A cena que eu vi foi inesquecível e compatível com o olhar que sempre imaginei Aline ter: olhar de ira.
Ela pegou a caneta, esticou o braço da colega e deu um risco na parte de dentro do cotovelo até a palma da mão de Estela e, para meu espanto: sangue.
Estela foi pra o banheiro, chorou igual criança, eu fiquei de olhos arregalados sem saber o que fazer e quase tive um filho quando vi Aline mudar seu crachá de lugar, colocá-lo onde havia o risquinho de caneta na sua blusa, sentar-se à mesa, pegar o bolo de cheques e começar uma soma assim... como se nada houvesse acontecido.


Ahhh, minhas gentes, adoro mascar chicletes mostrando todas as cores deles, conversar com as mãos, minhas roupas não muito brancas... e sinto um certo receio de pessoas tão aparentemente limpas e límpidas.

Há vintes anos não vejo Aline. Mas sei que ficou viúva e sem filhos...

7 comentários:

Jorge, FLÁVIA disse...

sorte dos filhos que ela não teve.
Fiquei com medo da caneta assassina e acho que o nome de hoje podia ser mais forte, talvez 'Antônia'... rsrs

Gostei demais da proposta do novo alfabeto, arrasando na criatividade...

bjoca de boa noite.

Jorge, FLÁVIA disse...

adorei a trilha do Caê, essa música é demaaaais...

Café e Anfetaminas disse...

Rosanaaaaaaaaaaa que medooooo! Será que ela matou o marido? Eu ja acho que sim.
Gente, precisava furar a coitada da Estela?
Rindo aqui, mas assustada com essa "pseudo" delicadeza dela. Prefiro gente "normal" como nós que falamos, gesticulamos e mostramos o trident rs!

Vera disse...

Risos.
É um conto, é eu verídico? Estou na dúvida.

Mas tenha certeza de uma coisa: eu adorei!! Muito bom ;-))

Abraços!!

Rosana Tibúrcio disse...

Flávia, ela tinha um quase suave, como a aparência, aí não quis um nome forte... e Caê sabe das gentes, né? eita...


Nossa, Jéss... e a Estela que nem se chama Estela era tudo de bom... morri de dó. Há outras duas histórias dela grandes assim que denunciaram o jeito rude interno de ser.
E viva os tridents aparendo na nossa boca.

Oi Moça do Fio... sim, é real - com alguns ajustes. Bem-vinda, te visito depois, tá? É que tô correndinho.

beijos, moçada.

Helô disse...

É Rosanita, eu também tenho receio de pessoas excessivamente controladas. Ou "controladas". Conheço uma bem de perto e não gostei do que vi qdo ela explodiu.

rafa disse...

Que medo!
Eu fiquei chocado. Absurdo. REdícula!!!

Mas é fato: quando a pessoa é muito calminha, espera que lá vem!