domingo, 15 de março de 2009

Flora e seus olhos claros

Das amigas de infância, Flora era a mais linda de todas: sorriso iluminado; pele branquinha, bonita e cheia de sardas; olhos claros; voz doce e pausada e de uma risada deliciosamente contagiante, daquelas que terminavam com um aiaaiiiiiiiii meio suspirado e mais delícia de se ouvir nesse mundo de meu Deus.
A impressão que eu tinha é que Flora nasceu pra dar certo, em tudo que fizesse ou vivesse, e ser muito feliz. Onde ela chegava o “clima” mudava: pra melhor.



Eu muito pequena, tímida e bobinha; não sabia exatamente o que aquele jeito de ser de Flora significava e "se" significava mesmo alguma coisa. A sensação que eu tinha é que ela deveria ser sempre observada, que a vida dela talvez não fosse seguir o ritmo comum das outras vidas das crianças lá daquela rua.
Os pais de Flora eram muito carinhosos e ela, como se não bastasse tudo que me parecia positivo, ainda era irmã do menino mais bonito e disputado da rua. Como “nosso possível namoradinho” era lindo, meu Deus!!!
E então, por tudo que Flora representava de luz, beleza, harmonia e bom comportamento, era também interessante que fôssemos amigas da irmã de Jorge: quem sabe uma de nós tirava uma “casquinha” no irmãozinho? Eita!!!


Da infância para a pré-adolescência foi um pulo e eu continuava a observar o jeito de Flora se comportar, a postura que ela tinha nas brincadeiras, o jeito meigo de conversar com as pessoas, a forma com que ela tratava os pais e era por eles tratada e tinha muita vontade de imitá-la, só que eu passava quilômetros de distância do jeito bacana dela viver e lidar com tudo e todos.
Das brincadeiras de infância passamos às saídas à noite para o centro da cidade, olhar os menininhos e quem sabe namorar um deles...e Flora então conheceu Danilo, numa dessas nossas idas ao “vai-e-vem”*.
Eles se apaixonaram e não se desgrudaram mais. Era bonito ver o casal, que a princípio iniciou um namorico sem que Flora contasse pra sua família. Mas como Flora era muito boa filha, tratou logo de relatar o fato pra mãe, que cuidou de contar ao marido sobre aquele namoro. (essa sequência: filha conta pra mãe e mãe pro pai ainda é uma babaquice usual, mesmo nesses tempos de agora, o que eu acho um porre, mas isso é tema pra outro post...)

E assim, Flora e seus pais marcaram um dia pra o moço ir lá pedi-la em namoro. Era uma felicidade só naquela rua, não tinha como não se sentir contagiada com a alegria de nossa mais linda e doce amiga.
E... no dia marcado os amáveis e compreensíveis pais de Flora conheceram o pretendente a namorado da filha. Como assim, um negro? Negro e pobre? Foi o caos!!!
Danilo era bem moreno e contrastava com a pele branquíssima de Flora.
O mundo certinho e correto da família de Flora se desmoronou. E ruiu, aquilo que nos parecia ser harmonia, compreensão e correção naquele lar, causando espanto e tristeza em todos. Foi uma perseguição implacável ao amor de Flora e Danilo. E nós, as amigas adoráveis da filha, éramos também preteridas pelo casal, pois mentíamos demasiadamente pra ajudar aqueles dois e eles perceberam logo. Foi a primeira vez na vida que eu senti isso de preconceito.

Eu pensava muiiiito a respeito daquilo tudo, várias coisas, mas não falava com ninguém das minhas impressões, não falava sobre a decepção que eu tive com os pais de Flora. Logo eles que eram os “meus pais ideais’. Como assim, tanta compreensão se desmoronar só porque o mundo tão certinho deles ganhou nova cor?
Mas Flora não desistiu e continuou namorando Danilo, às escondidas, com a anuência das amigas e do irmão lindão...
O tempo foi passando, ela cada dia mais triste, sorrindo menos e sem aquela risada aiaiiiii. Era uma judiação!!!

Fui morar no internato e noutra cidade. Numa das voltas às férias soube que Flora venceu os pais, namorava Danilo “em casa”... e ia se casar. Quando eu a reencontrei percebi que ela já sorria mais fácil, como era antes na infância, dava aquelas risadas lindas e contagiantes, mas algo no seu olhar me provocava uma tristeza: era o reflexo da tristeza que ela vivenciava ainda. Só que eu não sabia o quê exatamente.

Eu tinha tanta vontade de perguntar pra ela sobre o comportamento de seus pais, sobre como se deu o “acerto” do namoro, mas não tinha coragem. Aí eu ficava tirando minhas conclusões só com as observações que fazia. Que ela carregava uma tristeza no olhar eu sei que carregava, só que eu tinha vontade de saber como isso se desencadeou nela.

Flora se casou e teve váááááriossssss filhos... (que, aliás, é uma novela). Teve quatro filhos, assim, planejados. Mas já não querendo ter outros ela fez uma laqueadura. Passado um tempo, Flora começou a sentir uns enjoos e: grávida. Como assim??? Espantados ficaram os médicos e todos da família.
Ela teve o neném e Danilo fez vasectomia. Passado um tempo, enjoos e... Flora grávida novamente: de gêmeos.
Sei que ela tem uma porrada de filhos, já é avó e ficou casada com Danilo por muitos anos, vivendo um casamento feliz, foi o que me pareceu quando eu a vi pela última vez ao lado do maridão: o mesmo sorriso, a risada solta e os olhos mais felizes.
Danilo enfartou, Flora ficou viúva e da última vez que nos encontramos, ouvi aquela mesma risadinha linda, mas não vi mais tanta felicidade nos olhos claros de Flora...
.

*vai-e-vem era uma coisa bem estranha e cafona, aos meus olhos de agora, que existia aqui em Patos de Minas, no meu tempo de infância, adolescência e pedaço da juventude: o trânsito da rua principal ficava impedido para carros, lambretas, bicicletas e carroças (hahahaha, sim, carroças...) e a moçada andava de um lado para o outro, assim, de bobeira mesmo. Às vezes, rodas se formavam, às vezes, não... e era só um ir e vir sem fim...
.

7 comentários:

Vera disse...

Êba!!

Hoje serei a primeira a comentar :-p

Quando li "Flora", inevitavelmente lembrei-me da Patrícia Pillar em "A Favorita" (é, eu assistia).

É uma pena que toda a integridade, tudo o que alguém tem de bom, desapareça porque a pessoa é homossexual, ou namora um negro, pobre, alguém que por algum motivo - banal - contrasta com o parceiro.

Isso só prova o quanto ainda temos que evoluir.

Beijos, mocinha.

PS: Estava com saudade de suas linhas.

Rafael R. V. Silva. disse...

Que lindo!!!

Que simplicidade e completude!!!

Beijão.

Réa disse...

Rosaninha Daninha (gostei do apelido)seu texto me fez voltar no tempo e desfilar no "vai-e-vem".

Abraços
Réa Silvia

Café e Anfetaminas disse...

Admito que também lembrei da malvada da novela... rs
Que bom que Flora foi feliz com seus muuuitos filhos e Danilo.
Que triste esses pais preconceituosos... ainda bem que existe pessoas como essa moça, que enfrentou as dificuldades para mostrar que amor e felicidade tem todas as cores!!

Rosana Tibúrcio disse...

Genteeeee, eu nem me lembrei de Flora (sim, eu também assistia e a-do-ra-va), só quis um nome forte pra dar à minha amiga de infância, ou um nome iluminado, como é o dela, na verdade.
Moça do fio, tenho tentado vir todo dia, mas "acuma", essa merreca de saúde ou não saúde tá me judiando.

Bom, ler Rafael aqui. Gente, o blog dele é tudo de lindo e ele é lindoooooooo demais!!(acho que meu filhote Rafa vai ficar com "ímpio"... hehe).

Silvia, também conhece vai-e-vem? Ai, que bom, não me sinto tão E.T.
Eu gosto muito de Daninha, bastante, aliás... pode me chamar assim.

Jéss, eu tenho a ligeira impressão que os pais de Flora tiveram um aceto com o Danilo, porque eles eram bons, só não souberam lidar com a diferença... mas acho que no final, tudo deu certo.

beijos moçada.
Hoje não consigo postar, mas quem sabe amanhã.

Rafael Freitas disse...

Promete que me conta isso pessoalmente?

Amor tem dessas coisas, né não?!

Rafael Freitas disse...

Tá bom, tá bom... Eu confesso: também lembrei da Flora da novela!