Série: um livro
Imagem: Kurt Halsey |
Enfim chegou a família mais bonita das manhãs de domingo. A
menina era encantada com aquele casal e as duas crianças: engomadíssimos e
muito bem comportados. Como dois pares de jarras, um maior, outro menor, mas
numa mesma sintonia: de paz e união.
Outro grupo de família que frequentava aquela igreja tinha uma
ou outra criança desatenta que recebia, às vezes, repreensão de um adulto. Esse grupo familiar parecia não fazer parte do perfeito, como perfeitas são as coisas de
Deus. Havia, ainda, os avulsos, como a observadora: crianças que
iam sem os pais e pais que iam sem as crianças. Os avulsos não despertavam
curiosidade alguma. Deles, a menina já sabia o suficiente. Quer dizer, achava que sabia...
Mas aquela era “a família”, que parecia recortada de uma revista
de moda. A mulher, sempre muito elegante trazia, todos os domingos, um lenço no pescoço e um
véu na cabeça. Lindos. Os dois acessórios, invariavelmente, combinavam com o vestido. As
crianças, com roupinhas engomadas: a menina com véu amarelinho ou rosinha; o menino quase igual ao pai. O homem muito
elegante, normalmente de camisa clara, paletó e um missal na mão.
A cerimônia dominical acabou e a menina aproveitou o domingo de evento
familiar, misturado a um dos eventos cívicos da cidade, que ocorria na pracinha em
frente à igreja e à casa da avó, e decidiu saber mais daquela família. Hoje descubro de que é feita essa perfeição;
vou seguir “a família”, pensou. Achou que ninguém fosse dar por sua ausência. E
solitária na sua curiosidade e aventura - até então, a maior já vivida - resolveu seguir o grupo.
Notou algo estranho logo no final da escadaria: a mulher
soltou a mão do homem, uma das crianças cruzou os braços e a outra levou um
beliscão do pai. Aquilo não parecia ser verdade. Pensou em desistir da
aventura, mas só por um minuto. Novamente atenta à família perfeita, a menina não notou mais nenhuma agressividade, mas
também não percebeu mais nenhuma harmonia. O medo da verdade foi tomando conta
da menina...
Após dois quarteirões da igreja, logo na esquina, o homem abriu o portão e deixou que a mulher e as crianças
entrassem primeiro. Fechou o portão e juntos entraram na casa. A menina se posicionou ao lado de uma das janela da casa e em cima de um degrau de onde dava para ver um dos quartos. Alguém abriu, de forma rude, exatamente a janela daquele quarto e ela pôde ver e ouvir o casal discutindo. A rua não tinha movimento de pedestre. A cidade parecia estar toda na
pracinha. Menos ela e aquela família.
A menina ouviu um grito do homem e viu as mãos dele em volta
do pescoço da mulher e, em seguida, viu a mulher receber um tapa na cara. As duas crianças entraram chorando, o homem pegou cada uma delas, deu
duas chineladas e sentou-as ao lado da mulher que chorava; deu mais uns gritos dizendo algo que a menina não entendeu, virou as costas, saiu do quarto e da casa, abriu e fechou o portão,
passou pela menina, sem sequer notar sua presença, e seguiu em frente.
A menina não sabia se ficava parada ouvindo o choro da mulher e das
crianças ou se seguia o homem e jogava, na cabeça dele, uma daquelas pedras soltas da
rua.Não fez nada, ficou estática por alguns minutos. Logo depois, ainda muito trêmula, seguiu para a casa da avó. Ao atravessar a pracinha cruzou com aquele homem horroroso que conversava, animadamente, com outros três.
A semana demorou a passar e a menina se sentia angustiada.
Seu desejo era apenas chegar naquela igreja e contar para Deus tudo que tinha
visto.
No outro domingo a menina ainda assustada e mais atenta às
palavras do padre ouviu quando ele disse: “porque Deus está em todo lugar”; “Ele tudo
vê.” Foi quando a menina descobriu que, aos olhos de
Deus, nada passava despercebido. Então Ele já sabe de tudo; ela pensou.
Só na outra semana é que a menina conseguiu apreender no seu
olhar a verdade das pessoas que observava e não a verdade que ela idealizava.
Só muito depois é que a menina entendeu os lenços que aquela
mulher usava em volta do pescoço, fizesse frio ou calor; compreendeu que não
havia dois pares de jarras: havia um jarrão e três jarrinhas; entendeu que ali
não havia paz, muito menos união: havia um forte e horroroso subjugando três fracos.
Só muitos anos depois é que a menina entendeu porque passou a não suportar gritos; nem homens agressivos travestidos de calmos.
O que a menina nunca conseguiu entender foram os motivos que
levavam aquele chefe de família a fazer de conta que tinha fé e bondade, mas que
ao descer aquelas escadas se revelava um tirano. O que a menina nunca conseguiu
entender foi por que Deus, que a tudo via e sabia, não castigava aquele homem.
E a menina pediu a Deus, em todos os outros domingos, que Ele eliminasse da terra os homens maus que judiassem de suas famílias, que gritassem com mulher e filhos. Jamais foi atendida!!!
...
2 comentários:
Que pena que existem tantos homens maus nesse mundo, né?
Eu, no lugar da menina, teria pedido a mesma coisa pra Deus.
Caramba Rosanita! Chorei! Lindo e triste. E verdadeiro!
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