domingo, 26 de agosto de 2012

Esperando o doutor

Todo dia "ela faz tudo sempre igual"... mas nada muito romântico, como na canção de Chico. A Maria, ou melhor, aquelas Marias, têm o automático ligado e o repeat idem; assim, como se fossem um aparelho de som. Mas sem som próprio.

Batom discreto, roupas de cores sóbrias, agenda sobre a mesa, caneta e telefone ao lado da agenda, fichas para preencher.
As mesmas palavras de sempre em todo o horário de trabalho: pois não; vou verificar; segunda-feira, às 9 horas; me acompanhe, por favor; desculpa, o doutor se atrasou; aguarde mais um momentinho; ok, revisão marcada. Essas e outras tantas frases decoradas. Sempre iguais. A única mudança era para quem as Marias falavam.

Todas as vezes que aguardava a hora se ser atendida pelo doutor onde ia mensalmente, a menina observava aquela secretária de coque alto ou rabo de cavalo; batom clarinho e um sorriso tedioso. Ela sempre pedia à mãe para ir mais cedo ao consultório daquele doutor. A cada visita médica inventava uma desculpa qualquer e iam antes do horário marcado, pela secretária, só para ela observar a mesmice da rotina do trabalho de Maria.

E foi em meio a essas observações que decidiu sobre sua futura profissão. Não!!!! Ela quando criança ainda não sabia o que queria ser na vida; sabia apenas o que não queria ser: secretária de médico. A menina percebia, enquanto esperava o doutor atendê-la, que não haveria no mundo todo um trabalho mais entediante do que o trabalho das Marias secretárias. Para a menina essa era a profissão mais triste do mundo e que não deveria existir. A não ser como castigo.

A menina cresceu e continuou achando o mesmo dos anos de sua infância: secretária de médico é uma profissão ingrata, que deveria existir apenas como castigo. Talvez um castigo só de duas horas para cada Maria. E nas outras horas, que as Marias trabalhassem em qualquer outra coisa: vendedora de picolé, capinadora, auxiliar de escritório, motorista, professora, qualquer outra profissão.

Com mais tempo de vida, a menina descobriu que havia outra profissão tão ruim ou pior quanto a de secretária de médico: estagiária sem remuneração em escritório de advocacia. Daquelas estagiárias que só anotavam os recados e repassavam aos "patrões"; sem nada mais executar e, o que era pior, sem nada ganhar. A menina, depois de bem crescida, experimentou um estágio desses, mas por pouco tempo. E concluiu - num dia em que esperava médico de adulto atendê-la e enquanto observava aquela Maria trabalhar: estagiária sem remuneração era pior do que ser secretária de médico. As Marias secretárias recebiam salário. Salário que lhes permitiam comprar, pelo menos, mais um batom discreto.

Série: livro

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